sexta-feira, 3 de abril de 2009

Filosofando . Bíblia e Apócrifos



*Série . Filosofia*

Bíblia e Apócrifos

Entrevista concedida por Frei Jacir de Freitas ao Jornal Opinião em 14/10/2001



Jacir de Freitas Fraria é frade franciscano, sacerdote, escritor e professor. Natural de Pitangui (MG) e viveu toda infância e adolescência em Divinopolis (MG). Estudou no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, onde obtive o título de Mestre em Ciências Bíblicas, diploma reconhecido no Brasil, pela PUC do Rio Grande do Sul. Complementou os meus estudos no México e Israel, onde fez, respectivamente, cursos de Leitura Popular da Bíblia, Arqueologia, Geografia e Topografia de Israel e Jordânia.
Professor de Exegese Bíblica e Hermenêutica de Textos Antigos nos cursos de Teologia e e Pós-graduação em Ciências da Religião, no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Diretor Geral e Pedagógico do Colégio Santo Antônio de Belo Horizonte (MG)



Por que esse seu interesse pelo estudo da literatura apócrifa? O que se pretende?



Sempre pensei um dia dedicar-me ao estudo dos escritos apócrifos. A afirmação costumeira que os escritos apócrifos são meras fantasias e, o que é pior, mentiras inventadas por cristãos ou judeus piedosos, nunca me convenceu. Haveria de ter algo mais nessas palavras, pensava! Uma pessoa ou comunidade não se daria o luxo de escrever uma história simplesmente por escrever. Ela tinha um objetivo. A primeira constatação que fiz foi que muitos desses textos complementam o sentido, sem tirar a veracidade, dos textos canônicos, os considerados pela tradição como inspirados. No caso do evangelhos, talvez até poderíamos falar de um “outro” Jesus. Outro Jesus? Não! Um modo diferente de interpretação o evento Jesus Cristo. Interessante também foi perceber que muitas de nossas formas de piedade popular são oriundas das informações conservadas pelos evangelhos apócrifos, como por exemplo: nomes dos avós de Jesus, Joaquim e Ana, a palma de Nossa Senhora, a história de Verônica, o nome dos filhos de José... E tantos outros dados que só lendo os textos é que poderemos descobrir. E, ainda, não podemos deixar de mencionar a descoberta do amor especial que Jesus tinha por Maria Madalena, aquela que por primeiro recebeu o anúncio da ressurreição e que não é a mesma prostituta que o evangelho menciona. Essa foi uma interpretação equivocada que se tornou verdade. O que se pretende com o estudo dessa literatura não é outra coisa senão resgatar um novo sentido para os textos apócrifos, que comumente são interpretados como falsos, não inspirados. Não podemos mais entender apócrifo desta maneira, mas como algo precioso e, por isso, mantido em segredo. Não queremos reivindicar a inspiração dos apócrifos, mas estudá-los de com uma nova postura. Além disso, os evangelhos apócrifos são importantíssimos para que possamos resgatar a questão da leitura de gênero, isto é, a relação homem/mulher, no inicio do cristianismo e nossos dias, como nos mostra o Evangelhos de Maria Madalena e também os Atos de Tecla e Paulo.



Por que a Igreja conservou algumas informações dos evangelhos apócrifos e outras não?



Talvez por entender que esses textos trazem novidades, as quais desinstalam a opinião teológica já sedimentada. E por que eles são, de fato, já desde as origens do cristianismo, textos questionadores. Temos que reconhecer que, evidentemente, os apócrifos têm histórias aberrantes, que não poderiam corresponder à verdade. Mas também a “história” sobre Jesus nos evangelhos canônicos não é toda a história. Nem tudo sobre Jesus foi escrito, é claro. E muitos textos são releituras feitas pelas comunidades de então.



Quantos são os livros apócrifos?



A literatura apócrifa é uma outra Bíblia. Existem 112 livros apócrifos, sendo 52 em relação ao Primeiro Testamento e 60 em relação ao Segundo. Assim como a Bíblia, a literatura apócrifa está composta de Evangelhos, Atos, Apocalipses, Cartas, Testamentos. Existem também outras listas desses livros.



Você falou de Primeiro Testamento. O que isso significa?



Uso a terminologia “Primeiro” e “Segundo Testamentos”, porque compreendo o que tradicionalmente chamamos de Novo Testamento, como continuidade do Primeiro. O Segundo Testamento é releitura do Primeiro. Jesus não deixou de ser judeu. Ele é o Filho de Deus que nos trouxe a Salvação. O diálogo com o judaísmo é hoje de fundamental importância para todos nós.Dialogar é voltar às origens. Significa compreender o projeto de salvação inaugurado por Jesus dentro do projeto de santificação do judaísmo. O judaísmo será sempre judaísmo. É o cristianismo, sempre cristianismo. Somos dois caminhos e duas culturas afins. O estudo do judaísmo de origem é tão importante quanto o estudo dos apócrifos. Um não vive sem o outro. O estudo da Bíblia nessa perspectiva nos abre novas perspectivas. No nosso encontro de biblistas latino-americanos decidimos por publicar um número da Revista RIBLA sobre esse tema. Além de um outro sobre os apócrifos.



Os originais dos evangelhos apócrifos são conservados ainda hoje?



Sim. Temos textos em grego, latim, siríaco, cópto, etíope, etc. A descoberta de textos apócrifos despertou muito interesse entre os estudiosos do século passado. Em 1945, em Nag Hamadi, no alto Egito, foram encontrados, em língua copta, os evangelhos de Tomé e de Maria Madalena.De Maria Madalena, infelizmente, o texto está fragmentado. A presença de tantos textos fragmentados pode ser atribuída, além de outros fatores, aos decretos e recomendações papais solicitando o não uso desses textos pelos cristãos. É conhecido o decreto Gelasiano (referente ao Papa Gelásio – falecido em 496), contendo uma lista de 60 livros apócrifos do Segundo Testamento, os quais os cristãos deveriam evitar. E muitos livros apócrifos foram para a fogueira. Daí a importância de se encontrar um livro como o de Maria Madalena, guardado e conservado por tantos anos.



Essa proibição explica a rejeição e o preconceito que algumas pessoas, ainda hoje, têm em relação aos evangelhos apócrifos?



Acredito que sim, pois mesmo entre o clero há ainda aqueles que são capazes de dizer publicamente que não se deve dar crédito aos apócrifos. Continuam pregando que Maria Madalena era prostituta, se antes conhecer a maravilha do texto conservado pela comunidade que se criou em torno dela. Creio que devemos repensar o valor dado aos apócrifos. É claro que não se pode tomar todas as informações como verdades de fé. O mesmo também não ocorre como os evangelhos canônicos? Quem é o Jesus da fé e quem é o Jesus histórico? Isso é importantíssimo. Também nos evangelhos canônicos aquilo que era dado de fé passou a ser dado histórico e o que era dado histórico tornou-se dado de fé. É difícil distinguir, mesmo como o auxílio da exegese moderna, o Jesus da fé do Jesus histórico. As coisas estão misturadas. A fé é que nos coloca no caminho certo.



No início desta entrevista, você afirma que os evangelhos apócrifos enriquecem a reflexão sobre as questões de gênero na Igreja. Qual a importância das mulheres nesses evangelhos?



As mulheres são importantíssimas no início do cristianismo. Entre elas, destacam-se Maria Madalena, Maria, Mãe de Jesus, Tecla, Verônica. Nos evangelhos apócrifos sobre Maria, Mãe de Jesus, nós encontramos uma mulher diferente da que aparece nos evangelhos canônicos. Se em Atos dos Apóstolos ela é aquela mulher subserviente, que está junto aos apóstolos, mas que não tem liderança, nos apócrifos ela é uma mulher que discute de igual para igual com os apóstolos e que tem liderança entre eles. Tecla, da mesma forma, era a companheira de Paulo na evangelização. Ela batizava. Mas logo no início do Cristianismo a voz de Tecla foi silenciada. Tertuliano, que lutou contra o movimento de mulheres cristãs, no ano 200 E.C., escreveu o seguinte: “... Que elas se calem e que questionem, em casa, os seus maridos”.



Atualmente há um forte interesse pelo evangelho apócrifo de Maria Madalena. O que ele tem de tão relevante a nos dizer?



Ele tem muitas coisas fascinantes a nos dizer. Não somos mais os mesmos, depois de estudar o evangelho de Maria Madalena, a Miriam de Magdala, como era chamada. Nos evangelhos canônicos Maria Madalena aparece 12 vezes. Quem é essa mulher? A interpretação “errônea” de outros textos dos evangelhos chegou a identificá-la com Maria irmã de Marta, com a mulher que ungiu Jesus e, o que é pior, com a prostituta, interpretação que ficou mais no inconsciente coletivo. Quem não “aprendeu” que Maria Madalena era prostituta? E como seria bom “desaprender” isso. Tente! E você verá como é bonito descobrir o novo. É isso que está acontecendo com as comunidades e pessoas que já estudaram o Evangelho de Maria Madalena. Elas estão descobrindo a Maria Madalena mulher, discípula de Jesus, líder entre os primeiros cristãos. E porque não “apóstola” e mulher que Jesus tanto amou? E verdade que muitos também se escandalizam com testemunho dado pelo Evangelho de Filipe o sobre o relacionamento entre Jesus e Maria Madalena: “A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria mais do que todos os discípulos e a beijava freqüentemente na boca. Os discípulos viram-no amando Maria e lhe disseram: ‘Por que a amas mais que a todos nós?’ O Salvador respondeu dizendo: ‘Como é possível que eu não vos ame tanto quanto a ela?” (Filipe 63, 34-64,5). E em outra parte diz: “Eram três que acompanhavam o Senhor: sua mãe Maria, a irmã dela, e Madalena, que é chamada de sua companheira. Com efeito, era “Maria” sua irmã, sua mãe e a sua esposa” (Filipe 32).



Então quer dizer que Jesus beijava Maria Madalena?



Bom, essa é uma questão que deve entendida com carinho. O beijo em hebraico significa comunicar o espírito. Por isso é que dizemos que o beijo é, por excelência, o sacramento do amor. Maria Madalena tinha consciência dos ensinamentos do Mestre. Creio que podemos compreender isso olhando a cultura e a vida de tantos outros místicos. Francisco e Clara de Assis viveram essa mesma experiência sublime de amor. E chamar Maria Madalena de mãe, amada e irmã significa dizer a mesma coisa em três modos diferentes. /Eles representam a mulher (feminino) nos seus três estágios de vida: infância, procriação e menopausa. E todas essas dimensões, na relação com o homem (Jesus), revelam a união profunda entre os seres humanos.União sem divisão, sem dualidade. Por isso, Maria Madalena só poderia ter sido de Jesus mãe, irmã e esposa. Isso nos ajuda também a compreender a memória conservada pelas comunidades de Mc, Mt e Lc em torno à mãe e irmãos de Jesus.



A liderança de Madalena e a predileção de Jesus por ela incomodavam os apóstolos?



Incomodava e muito. O evangelho de Maria Madalena diz que ela recebe os ensinamentos do Mestre e os transmite causando a irritação de Pedro, que diz: “Será possível que o Mestre tenha conversado assim com uma mulher? Devemos mudar nossos hábitos e escutarmos todos essa mulher? Mas Levi, aquele cujo nome significa “meu coração”, repreende a Pedro dizendo: “Se o Mestre tornou-a digna, quem és tu para rejeitá-la? Arrependamo-nos!”, convoca Levi, o que significa “Unamos o masculino e o feminino dentro de nós e saiamos a anunciar o Evangelho segundo Maria Madalena”. E assim termina o Evangelho de Maria Madalena. Há um tratado gnóstico chamado Pistis Sophia que nos mostra o quanto a liderança de Maria incomodava os discípulos. Pedro chega perto de Jesus e pede que Ele expulse Madalena do meio deles, porque ela fala demais e não deixa ninguém falar. Para nós, isso mostra que as mulheres tiveram um papel fundamental no início do cristianismo e que havia disputas sobre quem seria o líder dos primeiros cristãos. Havia o grupo de Pedro, o de Paulo, o de Tiago, e também o de Maria Madalena. Considerar Maria Madalena como prostituta significa também subestimar o valor da mulher enquanto liderança. Não é mesmo?



É também Maria Madalena que diz que pecado não existe?



Sim, o evangelho de Madalena nos oferece essa idéia. Aí se diz que “não há pecado, somos nós que fazemos existir o pecado quando agimos conforme os hábitos de nossa natureza adúltera”. O ser humano nasce em estado de graça pura, sem pecado. São os condicionamentos da vida é que criam situações de pecado. O pecado então passa a existir e ele não é só moral, mas social e comunitário. Infelizmente a Igreja católica, no decorrer da sua história, enfocou muito o pecado moral, chegando a criar até listas de pecados, e muita gente viveu atrelada a essa idéia, sem conseguir se libertar. A confissão dos pecados fez e faz um bem para todos nós, mas a idéia que tudo é pecado, não. Por isso, descobrir através de um evangelho que originariamente o ser humano é estado de graça e que pecado não existe, é algo muito bonito e importante. Isso nos ensina a relativizar as coisas e pessoas. O absolutismo pode ser sinônimo de pecado. Só Deus é absoluto.



Então, os evangelhos apócrifos nos trazem uma imagem nova do cristianismo, uma imagem que os cristãos não conhecem pelos evangelhos canônicos?



Eu diria que eles nos ajudam a entender que, na origem do cristianismo, existiam vários modos de viver e compreender o evento que marcou a humanidade, Jesus de Nazaré. Os evangelhos canônicos constituem o resultado da experiência e interpretação dos atos de Jesus. Por isso, encontramos diferenças fundamentais entre os evangelhos canônicos. O Evangelho da comunidade de Mateus mostra um Jesus judeu que cumpriu as profecias dentro de sua cultura. E esse era o problema mais sério da comunidade de Mateus. Em Lucas, encontramos Jesus mais voltado para a salvação, para os pobres judeus e não judeus. Em Marcos, encontramos um Jesus missionário. Já o evangelho de João em parentesco em sua teologia sobre Jesus com o evangelho de Maria Madalena. João quase não entrou na lista dos canônicos. Aliás, postulo a idéia que o discípulo amado do evangelho de João era Maria Madalena. Ela, sim, recebe esse título nos apócrifos. E para que o seu evangelho foi considerado canônico, o evangelho de Maria Madalena virou de João e, João, por conseguinte, o discípulo amado. Bom, há de se considerar também que o discípulo amado nem seja João.



Também em Atos dos Apóstolos a perspectiva histórica do cristianismo poderia ter sido outra?



Os Atos mostram como a apostolicidade teve um papel preponderante no início do cristianismo. No entanto, o livro dos Atos dos Apóstolos relatam atos de Pedro, de Paulo, de Tiago e de outros discípulos homens. Não existiam mulheres atuantes? Nominalmente, onze delas são citadas em Atos dos Apóstolos. A lista dos homens é bem maior. Contei 90 deles. O que isso significa? Disputa de liderança? Maria Madalena não era também apóstola? Não foi ela uma liderança fortíssima entre os primeiros cristãos? É o que nos revelam os apócrifos. E tem tantos outros Atos que os Atos não contam!



Parte do Evangelho de Tomé pode ser do ano 50. Isso não traz novidades em relação ao conhecimento da pessoa de Jesus?



Segundo os estudiosos, parte do Evangelho de Tomé data do ano 50, sobretudo as parábolas de Jesus. Nos evangelhos canônicos nós temos parábolas e alegorias. A parábola é o fato e a alegoria é a interpretação que se faz dele. No Evangelho de Tomé não existem alegorias, apenas parábolas. Isso nos leva a entender que esse evangelho está mais próximo da fala original de Jesus. Comparando os textos, a gente percebe isso claramente. Na parábola do semeador, por exemplo, o que Jesus estaria dizendo? Ele convoca o pessoal do norte da Galiléia, os quais estavam assistindo o roubo de suas terras pelo Império Romano e repassados aos “apadrinhados políticos” do Império, a lutar pelos seus direitos. Ou seja, Jesus ensina os trabalhadores a resistirem. Outro texto interessantíssimo é a Parábola dos vinhateiros, que algumas bíblias intitulam como “Parábola dos vinhateiros homicidas”. Quando se faz uma comparação entre a os textos de Tomé, Mateus, Marcos e Lucas, percebemos nitidamente a intenção de cada um deles. Os três evangelistas canônicos relêem a parábola na perspectiva da vida de Jesus: ele é aquele que foi morto fora da vinha; o dono da vinha é o Pai (Deus); os trabalhadores representam o povo de Israel que rejeitou Jesus. O texto de Tomé não diz isso. Ele coloca os vinhateiros de uma forma positiva, pessoas que não têm nada de homicidas. Vinhateiros, em Tomé, são os trabalhadores que se organizam e que brigam contra o patrão para reivindicar o direito à terra, herança dada por Deus que estava sendo tomada pelos romanos. Por mais paradoxal que seja, o Evangelho de Tomé convida a comunidade a resistir contra aqueles que tomavam as suas terras. Evidentemente, as comunidades de Marcos, Mateus e Lucas, cada uam a seu modo, e a partir da problemática interna e externa vividas por elas: perseguição judaica, ambição pelas riquezas do mundo, etc., elegorizam a fala de Jesus. E isso também não está errado. Nós fazemos o mesmo ainda hoje.



É possível que os evangelhos apócrifos venham, um dia, a fazer parte da Bíblia?



Isso nunca vai acontecer, é uma questão que não se discute. O que nós queremos hoje, quando voltamos a estudar essa temática, é resgatar esses evangelhos para uma compreensão maior de nossa fé. Muitos séculos se passaram e não dá mais para querer que os apócrifos sejam reconhecidos oficialmente. O que nós defendemos é o acesso ao estudo desses textos, sabendo que eles podem em muito nos ajudar. E as comunidades de fé, devidamente preparadas, devem ter acesso a esses evangelhos.

Paulo Braccini
enfim, é o que tem pra hoje...

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