quinta-feira, 3 de julho de 2008

A arte do sonho é o elogio da tua sombra


_______o céu não basta. nunca bastou. _________nem a branda ternura mata-borrão. matemática mansa a multiplicar a incógnita exponencial do conhecimento das emoções. o coração a bater recordes. um despertador gigante a marcar a hora de dar e receber. recebi ontem ordem de andar. e andei. o corredor sujo cinzento e comprido acabava na sala A. quadrada vazia . ovo morto desinfetada . uma bata branca com olhos de ave de rapina mandou-me sentar . nome idade estado civil morada profissão se tinha frio sede fome dor . se via bem .via via vultos muitos iguais entre si e a mim . pendurados no meio do silêncio ajeitados na corda de um silêncio escanzelado . vultos a vomitarem palavras frases de um concerto de facas e violinos . via bem sim só não percebo o que faço aqui . o nome o meu nome o nome deste corpo amarrado a uma gaze transparente e pequena demais para mim . não sei . nem quero saber . quero dormir . a bata branca com olhos de ave de rapina sorriu . parecia simpática .é um homem aposto . aposto que é médico . daqueles que tratam os que se destrambelham por inteiro . deve ser o meu caso .aposto . o nome? está bem não faz mal . esqueça .tem dormido melhor? ah eu agora dormia mal? e como é que ele sabe? sim agora durmo mais . e sonho menos . os meus sonhos? são bom os meus sonhos são imagens paradas fotolitos encerados de bruma rostos que desconheço mas que se penduram sobre a cabeça entre os cabelos presos por molas de aço rostos brancos e como gosto de cores pinto-os . de apatia . de areia . de granito verde . é verdade olhe lembrei-me agora é isso sou pintora . escreva aí .e a bata branca escrevia escrevia escrevia sem parar . meticulosamente . se calha era um escritor em estágio . para inventar dissecar os meandros ínvios da loucura .sim por que estou num hospital psiquiátrico entregue à estúpida curiosidade mórbida de qualquer um ou de uma bata branca . era previsível . mais dia menos dia . foi só apanhar a vírgula que separa a aparente normalidade da demência concreta . vem no catálogo do riso e do esgar . por sorte não me lembro da ruptura . que fio se partiu . quem se fartou de me ouvir tocar sonatas para pássaros . os pássaros passam .voam .fogem .livram-se . a passagem . os passos . as garças .as garças não têm graça . nem alças . alçam para lado nenhum . pois está bem . já não quero fingir . sou isto . um corpo amarrado ao chumbo . agora posso falar alto falar sozinha escrever nas paredes escrever na água . beber um alfabeto de areia . beber tinta comer livros e fumar . fumar muito . não vivo na califórnia e o meu polícia privado e saudável está longe .doente . insana . demente . inclemente . agnóstica . árabe . descalça . pastando cabras ao meio dia no meio do nada . um quénia dentro da avenida . louca louca varrida . fechada numa cela branca . à prova de vitalidade e sais minerais . ovo partido casca de vidro . objetivo? dormir dormir e dizer disparates sossegados tranquilizantes frases soltas com vogais partidas ao meio e um intervalo ao canto para espreitar metáforas in.férteis molhadas de baba que a bata branca escreve . descodifica . adultera . reduz . aumenta . simples eficaz leve . finalmente tenho uma profissão . enlouquecimento galopante e versátil . nem sou obrigada a dizer boa noite . boa foi desta consegui entrei no charco no reino de Erasmo olá Camilo olá Kafka cheguei . é meu este prato de ficção . viva a eternidade num copo de vallium ardente . alguém me gela o estômago alguém me corta o cabelo? é tudo uma questão de justiça dizes tu ou uma banda mal desenhada . trágica e supérflua anavalhas os verbos com açúcar de groselha . basta de resina . não sabes viver . pois não sei . sei que estamos em Roma a lamber massa escorregadia e que estás cansado do meu olhar volátil e volúvel e que apago a chama e cada dia estou mais fraca baça inconsistente inconformada pesada andrógina marginal pois perdi o pé cansei afundei-me na banheira . Roma podia ser Paris Boston ou Lisboa . se gosto de ti? como posso não gostar se me és a única face que reconheço? injusta? não te facilites tanto . a vida pregou-nos uma partida . legítima . dura . para sempre . eu queria a tua sabedoria tu exigias a minha alma . tu desenhaste um desvio eu enfiei-me no buraco negro que já conhecia . voltar atrás para quê? não há regresso . nunca . só um porto destruído. onde as esponjas mortas amortecem os suspiros e rompem as redes . ________ a bata branca adormeceu no meio da tarde . o mesmo medo a mesma ilha . a vida arredondada à volta de um remo partido . o fundo do mar . a inexplicável ausência da primeira pessoa . nenhuma memória . singular destino traçado por um bando de pássaros . que odeio . fecho o piano . largo-me pelo mar . bem adentro . rasgo a bata branca e danço a Lacrimosa com sapatos de lata . _______________ fica o arrepio ou o argumento de Braque .


( ... é mais nítido agora o silêncio que me envolve . como se a morte ou apenas o pressentimento dela viesse, de mansinho, ao meu encontro . )( Anoto nas paredes o eco dos teus passos, mensageiro do mais remoto assombro em que te sei .)
______ in "Uma extensa mancha de sonhos", de Graça Pires . (último livro publicado)
Isabel Mendes Ferreira . blog o piano
Paulo Braccini
enfim, é o que tem pra hoje...

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